Quem fala? De que fala?

Numa carta de 1935 a Adolfo Casais Monteiro, diretor da revista Presença, Pessoa chamou a Bernardo Soares semi-heterónimo, dado ser, não uma personalidade diferente da sua, mas uma “simples mutilação” dela: “Sou eu menos o raciocínio e a afetividade”. A sua escrita era aí definida como “um constante devaneio”.

Bernardo Soares entende o Livro do Desassossego como a sua “autobiografia sem factos”. Estes fragmentos são os seus pensamentos, as suas confissões, as “paisagens” daquilo que sente.

Bernando Soares é ajudante de guarda-livros, ou seja, faz a contabilidade de um escritório comercial. Vive e trabalha na Rua dos Douradores, na Baixa de Lisboa. As pessoas com quem trabalha – o Patrão Vasques, o Moreira, o moço de fretes – ou as pessoas anónimas com quem se cruza na rua motivam as suas divagações.

A realidade vivida e a realidade sonhada confundem-se: as noções de sonho, de intervalo, de inquietação e incerteza são temas e lugares de muitas passagens do Livro.

O questionamento interior de Bernardo Soares não tem resolução e não tem conclusão. O próprio movimento do pensamento é a sua matéria e o seu fim. Num dos trechos diz: “Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução.”

Bernardo Soares deambula pela Baixa de Lisboa, observando, sentindo e comentando. Contempla a cidade como se reparasse em tudo pela primeira vez, mas sente que a paisagem exterior não é independente dos seus estados de alma. A esquadria da Baixa transfigura-se numa cartografia pessoal.

Como Bernardo Soares, também Fernando Pessoa trabalhava na Baixa num ambiente de escritório comercial, cujas máquinas de escrever muitas vezes aproveitava para fins literários.

O efeito de espelho entre Pessoa e Soares lê-se ao longo das páginas do Livro do Dessossego, e até mesmo na relativa proximidade sonora dos seus nomes: F-ernan-do/B-ernar-do — Pes-soa/Soa-res.

Apenas mais um jogo que Pessoa deixa à disposição do leitor-decifrador.