Ana Luísa Amaral

ALEPPO, CALAIS, LESBOS, OU, POR OUTRAS PALAVRAS


quero falar do que antes eram ruas, avenidas
bordadas a casas e palmeiras, dos tapetes que outrora,
em imaginação nossa, voavam de magia
e que agora se esfumam de outras formas,
as mais rasas

Ou do tempo da poesia antes, quando os barcos
entravam, esguios, e a palavra se fazia
a nitidez de imagem, da violência depois e deste tempo,
porta de entrada em rudes barcas para a violência
em séculos agora

Ou ainda dos carreiros de gente
a parecerem oceanos a lentes de distância, grandes planos,
mas que, partida a gente em gente singular, sobra em nomes
inteiros, gostos próprios, distintos sofrimentos, músculos
de sorrir diferentes todos,
                                                                     ah, se a amplíssima lente
se transformasse, estreita, em microscópio de vida

Do que vejo de longe e num écran,
não consigo falar usando redondilha,
versos redondos, uma sintaxe igual e certa

quero estas linhas em que falo das outras linhas
feitas de outra matéria, real e dura, explodida, essa,
detida por coletes e armas cor de fumo,
e, ao lado dos oceanos de gente,
os sedimentos que vivem noutras gentes,
as vizinhas a mim, o ódio construído lentamente
a rasar a abominação

Do que chega em olhar, das camadas de séculos em que tudo
parece mercadoria fácil de esquecer,
ou então que o desterro nos ficou raso aos genes
e só ele é lembrado, e ele sozinho serve para insistir o horror,
de tudo isso não há forma de verso que me chegue
porque nada chega de conforto ou paz

Mas que o furor persista,
e que neste recanto ao canto desta Europa,
mesmo sem vergonha de estar quente e longe,
e protegida sob uma lente amplíssima
que só deixa passar, finíssimas, meia dúzia de imagens:
ou, por outras palavras, a cegueira –

mesmo sem palavras: o furor

 

 


Ana Luísa Amaral
What’s In a Name, Assírio & Alvim, 1ª ed 2017, pág. 72