Tatiana Faia - Portugal

Nasceu em 1986. É autora de quatro livros de poemas: Lugano (Artefacto, 2011), teatro de rua (do lado esquerdo, 2013), Um quarto em Atenas (Tinta-da-china, 2018) e Leopardo e Abstracção (Fresca, 2020), e de um livro de contos, São Luís dos Portugueses em Chamas (Enfermaria 6, 2016). Em 2019, o Prémio Pen de Poesia foi atribuído a Um Quarto em Atenas. É uma das responsáveis, com João Coles, José Pedro Moreira e Victor Gonçalves, do projeto editorial independente Enfermaria 6. É doutorada em Literatura Grega Antiga com uma tese sobre a Ilíada de Homero. Traduziu para português Homero e Anne Carson. Vive e trabalha em Oxford. 

 

a primeira cor do dia 

a partir de Cy Twombly, Night Watch 1966 

a atenção prestada à noite 
é esta porta que bate como um ponto final 
e se torna uma obsessão muito particular por uma cor  
e agora é só essa cor que domina  
toda a geografia  
de uma parte de um dia 

onde é difícil falar de como  
as linhas brancas revelam o volume 
acidental de corpos tão agudos 
que são só arestas 
a noite quase um lume nas linhas 
primordiais que são quase sempre 
a primeira evidência dos poemas  
a possibilidade da expressão total de um corpo 
quando encontra a tela certa  

casou-se primeiro com uma mulher  
chamada tatiana  
disse-me alguém uma vez 
e nunca pensei neste quadro em via dei librai 
onde a primeira figuração da noite 
seria a intolerável hora de uma esperança 
a irresolúvel dimensão de alguém  
tão vulnerável e despojado 
nessas linhas brancas que em qualquer noite 
são casas acidentais 
bares onde te sentas para beber 
umbrais que conheço 
e se separam e se multiplicam até ao infinito 
com as suas perguntas difíceis  
as suas angustiadas inquietações 
um sentimento que assenta como um cerco 
com o seu peso  
e com a beleza da sua cor absoluta 

a clareza de uma escuridão 
isto é  
a clareza despojada e quase clássica da escuridão 
é da ordem da primeira cor do dia 
do mistério que a noite tem sempre 
e é sempre irreproduzível 

a primeira cor do dia é a noite
que ressurge por acidente 
na cor do café de manhã 
interrogativa como as casas  
diante das quais  
permanecemos por demasiado tempo 
uma forma de segredo suspenso 
de como atravessamos todo o tempo 
e numa errada tentativa 
suportamos de olhos abertos  
uma duração letárgica e triste 
para chegar à paixão  
de apenas duas cores essenciais  
e exactamente o contrário uma da outra  

Palermo, Roma, Oxford 
Março de 2022 
(inédito)