João Paulo Esteves da Silva - Portugal

Músico, poeta, tradutor, nasceu em Lisboa, em 1961. Gravou e publicou dezenas de discos em várias editoras. Publicou também nove livros de poemas, a maior parte deles na editora Douda Correria, de que se podem destacar os mais recentes O coração do Adão (2019), Missangas (2020) e ainda Prelúdios (em colaboração com Manuel de Freitas, Alambique, 2020). Tem colaborado regularmente em revistas e antologias. Traduziu para teatro, Beckett, Ibsen, Strindberg, Pasolini, Stoppard, Rostand, Albee, Molière, Shakespeare, Dumas, Leroux, entre outros. Para a Douda Correria traduziu poetas como Mordechai Geldman, Chus Pato, Bernard O’Donoghue, Alejandra Pizarnik e a bíblia hebraica. A sua poesia está vertida em hebraico e publicada em Israel pela editora Keshev.  

Amarás a repetição 

 

Nestes últimos tempos, acordo cedo,
já desisti de ficar a revirar-me na cama, levanto-me.
São seis e meia da manhã; sento-me na cozinha
com um prato de cerejas, mastigo a olhar para o quintal.

As quatro cadeiras de madeira velha, em ligeira desordem,
parecem estar ocupadas, mas não há ninguém, nem vento.
Dantes, cuspia estes caroços do alto de um quinto andar
tentando acertar nos tejadilhos dos automóveis que passavam.

Pouso os caroços no prato, imagino o som do choque na chapa
e olho lá para fora, para a cena de luz coada que muda lentamente.
Entra um pardal, estrebucha, saltita, faz uma vénia e sai pela direita.
Há mais pardais, ao fundo, na sombra, ou seria o melro?

Vejo os pequenos milagres: o damasqueiro, condenado pela ciência,
há mais de dez anos que vive além da morte com folhas e frutos;
e a magnólia teria trocado, já, todas as flores por folhas, mas não;
uma flor solitária, estranha, persiste e resiste, meio aberta.

Tudo isto fala, tudo isto tem um sentido oculto, ah pois tem;
mas não quero saber qual é, ao certo, aliás, 
acredito que seja bastante incerto.
 As nuvens movem-se, desviam-se, cresce muito a luz.

Aparece o ar, radioso, cheio de pó, teias e insectos.
O frigorífico deixou de ronronar e reparo que existiu
porque só agora ouço, mezza voce, os chilreios da passarada.
Respiro fundo; shabat shalom, e seja a manhã louvada!

 

22/06/2019 

Poema inédito